Procissão marítima em São Cristóvão; ao fundo o Hospital dos Lázaros, século XVIII 1. |
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Nota: no texto a seguir e em todo o site, a sigla 'CPM' se refere ao
Catálogo Temático das Obras do Padre José Maurício Nunes Garia,
compilado por Cleofe Person de Mattos.
O ano de 1783 marcou o início de uma parceria do jovem músico, aos 15 ou 16 anos, com o mestre de capela e subchantre da Sé do Rio de Janeiro, o cônego João Lopes Ferreira. Documenta essa parceria a antífona "Tota pulchra Es Maria" (CPM 1), dedicada à Catedral da Sé, a primeira composição conhecida de José Maurício. Já aspirava ao sacerdócio. A carreira eclesiástica, além de proporcionar uma renda estável e lhe fornecer meios para realizar seu talento artístico, conferia a imunidade, numa época de absolutismo e fanatismo religioso, à violência do Santo Ofício, à arrogância dos poderosos e aos arbítrios do recrutamento compulsório, perigos aos quais as famílias pobres do Reino e das colônias estavam sempre sujeitas 2. Em 1784, aos 17 anos, ele assinou a ata de fundação da Irmandade de Santa Cecília como professor de música, juntamente com o professor Salvador José de Almeida e Faria e o aluno Bonifácio Gonçalves. Sob a invocação da Padroeira da Música, a irmandade fora criada para regular a atividade de uma numerosa classe que abrangia cantores, instrumentistas, regentes, copistas, compositores e professores, numa cidade na qual a música fazia parte das cerimônias oficiais. À Irmandade cabia promover exames admissionais, impor diretrizes de trabalho, de ganhos, deveres e direitos, e exigir "bons costumes" dos participantes. O compromisso da Irmandade de Santa Cecília foi confirmado pela rainha Maria I em 1786 3. Segundo o catálogo de Joaquim José Maciel 4, ao final da década de 1780, José Maurício já era autor do seguinte repertório: uma "Ladainha de Nossa Senhora" para quatro vozes e órgão, de 1788; os hinos "O Redemptor Sume Carmen" e dois "Pange Lingua", de 1789. Além dessas obras, foram encontrados na coleção Gabriela Alves de Souza, da Biblioteca Alberto Nepomuceno da Escola de Música da UFRJ, manuscritos a capella para toda a semana santa da Sé, os "Bradados" ou paixões. Desses, o mais importante é a coleção dos "Bradados de 6ª feira Maior" (CPM 219), ou Paixão da Sexta-Feira Santa, do qual fazem parte alguns motetos que, devido à grande difusão em acervos musicais, hoje são classificados individualmente no Catálogo Temático: "Crux Fidelis" (CPM 205), "Heu Domine" (CPM 211); "Popule Meus" (CPM 222); "Sepulto Domino" (CPM 223); e "Vexilla Regis" (CPM 225). Em alguns dos manuscritos consta o ano da composição: 1789. Fragmentos de outros "Bradados", sem data e autoria, mas com a mesma caligrafia e estilo, indicam composições para a "2ª feira maior" (CPM 219b): gradual "Exsurge Domine", verso "Adjuvando nos Deus" e o moteto "Domine Jesu" (CPM 208); para a "3ª feira maior" (CPM 219c): gradual "Ego Sum" e ofertório "Custodi me"; e para a "4ª feira maior" (CPM 219d): gradual e tracto "Ne avertas", e ofertório "Domine exaudi". Em 1790, o jovem músico, aos 22 anos, obteve a notoriedade no Rio de Janeiro com uma obra instrumental: a "Sinfonia Fúnebre" (CPM 230). Não consta do catálogo Maciel, o que indica não ter sido composta para a Sé. Outras instituições, portanto, já solicitavam seus serviços 5. |
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![]() Gazeta de Lisboa em 10 de maio de 1791, registro da apresentação no Rio de Janeiro do "Te Deum" pela "feliz chegada" do vice-rei D. Luís de Vasconcelos a Portugal. Primeira notícia publicada sobre o compositor além-mar 6. |
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1 JOAQUIM, Leandro. Procissão Marítima e Lazareto. Óleo. Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro. In MACEDO, Joaquim Manuel de. Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garnier, 1991. Caderno de fotografias à p. 40. 2 Manuel de Araújo Porto-Alegre é eloquente ao descrever a situação: "Naquelas eras, a segurança individual, o esteio das famílias pobres, e o amor materno, só achavam um asilo seguro e inviolável na Igreja, e por isso, e pelo espírito religioso da época, as famílias tinham necessidade de que um filho ao menos as amparasse das violências tenebrosas do Santo Ofício, das vinganças e fanatismo de seus terríveis familiares, da prepotência dos maiores da terra, e das crueldades do recrutamento. O padre era a âncora de salvação da casa, o homem predileto, o filho mais querido, o laço da harmonia, o que nobilitava a familia, e a tornava privilegiada e co-participante de todos os prazeres públicos de então, que se limitavam nas festas da igreja, e nas que a família celebrava de harmonia com as do culto. Naquela época de fanatismo e poderio monacal, as vestes religiosas tinham o prestígio e o privilégio de serem respeitadas desde a sala do vice-rei até a mais pobre habitação: o hábito substituía a idade, o nascimento, a riqueza e o saber". PORTO-ALEGRE, Manuel de Araújo. Apontamentos Sobre a Vida e as Obras do Padre José Maurício Nunes Garcia. In MURICY, José Cândido de Andrade et alii. Estudos Mauricianos. Rio de Janeiro: INM/FUNARTE/PRÓ-MEMUS, 1983. p. 24. 3 MATTOS, Cleofe Person de. José Maurício Nunes Garcia - Biografia. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Biblioteca Nacional, 1997. p. 34. Digna de nota é a ausência do mestre de capela João Lopes Ferreira entre os signatários. 4 MACIEL, Joaquim José. Catalogo das musicas, archivadas na Capella Imperial, de compozição do Padre Mestre José Mauricio Nunes Garcia, organizado por ordem do Ill.mo e Rev.mo Monsenhor Inspector, pelo Archivista Joaquim Jos&ecaute; Maciel. 9 de julho de 1887. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, lata 7, doc. 9. 5 Cleofe Person de Mattos sugeriu que fosse destinada á Irmandade da Ordem Terceira do Carmo, que perdeu nesse ano de 1790 um irmão importante. Reforça esse argumento o fato de que há partes assinadas por José Batista Lisboa, que por muito tempo foi responsável pela música nessa Irmandade. MATTOS, op. cit., 1997. p. 218. 6 "Da mesma Capital da América também informam que, constando haver ali o Excelentíssimo Luiz de Vasconcellos e Souza felizmente chegado à Corte, excitou esta grata notícia em todos aqueles moradores uma tão viva e saudosa recordação do governo deste Fidalgo, que, não podendo mostrá-la de outra sorte, resolveram dar graças ao Céu na Igreja de N. Senhora do Parto (com a qual, e seu recolhimento praticara sua Excelência muitas ações de piedade) fazendo, mediante a Irmandade de Santa Cecília, cantar um Te Deum, cuja nova música foi composta por José Maurício Nunes Garcia, e executada por uma completa orquestra. O Excelentíssimo Vice-Rei sucessor, o Excelentíssimo Bispo, Nobreza, Ministros, Militares, e Corpo de Comércio assistiram a esta gratulatória ação, que causando geral devoção e contentamento, ficou sendo um novo e bem merecido monumento da memória, que conservará aquela Capital d'um Vice-Rei, que tanto se distinguiu no seu governo". Gazeta de Lisboa, 10 de maio de 1791. |