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Marcos Antonio da Fonseca Portugal
Marcos António da Fonseca Portugal. 1

CHEGA O COMPOSITOR DA CORTE

Em 7 de janeiro de 1811 o príncipe regente expediu uma convocação específica para o mestre de música Marcos Portugal, que permanecera em Lisboa apesar de já haver sido convocado ao Rio de Janeiro em 1809 2.

Filho de Manuel António da Ascensão e de Joaquina Teresa Rosa, Marcos António da Fonseca Portugal nasceu em Lisboa, em 24 de março de 1762. Seu nome de batismo era Marcos António da Ascenção. Estudou no Seminário da Patriarcal de Lisboa a partir dos 9 anos, onde teve como mestres os compositores João de Sousa Carvalho e provavelmente José Joaquim dos Santos, padre Nicolau Ribeiro Passo Vedro e António Leal Moreira, todos professores do Seminário à época. Compôs um "Miserere" aos 14 anos de idade. Apresentou pela primeira vez ao público em 1780, na Santa Igreja Patriarcal, duas antífonas "a canto d’órgão": "Salve Regina" e "Sub tuum præsidium". Aos 20 anos já era organista da Patriarcal, com o salário de 12$500 mensais. Em 23 de Julho de 1783 foi admitido na Irmandade da S. Cecília. No ano seguinte, foi nomeado maestro do Teatro do Salitre, para o qual compôs farsas, elogios, entremezes e modinhas 3. Em 1 de setembro de 1787, foi também nomeado compositor da Patriarcal, com o salário aumentado para 50$000 mensais. 1782 marca o início da colaboração com a família real, ao receber da Rainha D. Maria I a encomenda de uma "Missa com instrumental" para a festividade de S. Bárbara, celebrada na capela do Palácio de Queluz. Em 1792 foi agraciado com uma bolsa para complementar os estudos na Itália, onde permaneceu por oito anos. Nesse período, compôs pelo menos 21 óperas, na maior parte cômicas e farsescas, que granjearam imenso sucesso em toda a Europa, pois além das estréias nos teatros para os quais foram escritas, em Ferrara, Florença, Milão, Nápoles, Veneza e Verona, houve representações em Viena, Paris, Londres, Dublin, São Petersburgo, Berlim, Dresden, Hamburgo, Hannover, Leipzig, Nuremberg, Corfu, Barcelona, Madri, Lisboa e no Porto 4.

Em 1800 ele retornou a Portugal, e além de reter o cargo de compositor da Sé Patriarcal, foi nomeado mestre de solfa do Real Seminário da Patriarcal e mestre de música do Real Teatro de São Carlos 5. Compôs para o São Carlos óperas sérias, sendo a única bufa "L’oro non compra amore". Sua música era requerida na maioria das festas e eventos nas várias reais Capelas e Palácios, particularmente Queluz e Mafra, onde a corte residiu desde o final de 1805 até a partida para o Brasil dois anos depois. Nos anos de 1806 e 1807, compôs muitas obras dedicadas às vozes masculinas dos monges franciscanos, e para o conjunto único de seis órgãos na Basílica de Mafra. Trinta desses trabalhos sobreviveram e pelo menos 11 foram posteriormente reformulados para as vozes mistas e a orquestra da Capela Real do Rio de Janeiro 6. Ele permaneceu em Lisboa por ocasião da partida da Família Real para o Brasil, em 1807. Nesse ano, apresentou uma ópera ao general Junot, no São Carlos, pela qual foi acusado de atividades antipatrióicas 7. Mas outra de suas composições foi uma cantata dedicada do Príncipe Regente, cujo hino final foi cantado por muitos anos como o hino nacional português.

O compositor deixou a cidade natal em 6 de março de 1811, na fragata Princesa Carlota, que, ao cabo da viagem de três meses, em 11 de junho aportou no Rio de Janeiro 8. Ao que tudo indica, foi calorosamente recebido pelo príncipe. Em 23 de junho, foram expedidos quatro decretos 9, que estipulavam em detalhes os seus rendimentos e benesses como mestre de música de Suas Altezas Reais. Três dias depois, em 26 de junho, foi celebrada na Capela Real uma "missa solene pela expulsão de Portugal das tropas de Napoleão", em Pontifical, celebrada pelo deão e com a assistência do Bispo Capelão-Mor. A música fora provavelmente a "Missa a grande instrumental para a Real Capela do Rio de Janeiro", composta em Lisboa em 1810 e trazida ao Rio de Janeiro pelo compositor.

Apesar de, segundo o desafeto Luís dos Santos Marrocos, ter "fumos mui subidos", o mítico primeiro encontro do compositor com José Mauricio foi aparentemente cordial 10. O padre, desafiado a tocar uma sonata de Haydn ao cravo, após a execução da peça recebeu um abraço e a declaração: "Belíssimo! És meu irmão na arte! Com certeza serás para mim um amigo!" 11.

Em setembro de 1811 José Maurício entregou ao Inspetor da Capela Real uma "Relação das obras compostas por José Maurício Nunes Garcia até 6 de setembro de 1811" 12, na qual constavam cerca de duzentas composições, incluindo as destinadas à Sé do Rio de Janeiro. Nada indica, no documento, tratar-se de uma prestação de contas demissional.

Em 9 de outubro, Marcos Portugal foi nomeado inspetor dos teatros, com as obrigações detalhadas em comunicação do Conde de Aguiar 13. Alguns dias depois, foi vítima de um ataque cerebral 14, que não deve ter sido muito grave, pois em 17 de dezembro regeu um "Te Deum" na missa em que foi batizado o infante Sebastião Gabriel, filho da infanta D. Maria Teresa e do infante D. Pedro Carlos. Foram padrinhos a rainha D. Maria I e o príncipe regente. À noite, para celebrar o aniversário da rainha, cantou-se no Teatro Régio a ópera "L'oro non compra amore", em estréia no Brasil. A obra fora composta para o Teatro São Carlos em 1804. Os cantores eram italianos, com exceção de dois: os cantores brasileiros João dos Reis Pereira, baixo, e Joaquina da Lapa, a "Lapinha", soprano.

José Mauricio ao piano
José Mauricio ao piano na presença de D. João, da princesa Carlota Joaquina e de Marcos Portugal 15

A documentação disponível contraria o que sustenta a tradição biográfica mauriciana. Marcos Portugal jamais foi nomeado mestre da Real Capela, e sua chegada não provocou a dispensa de José Maurício do cargo que ocupava já há três anos. Apesar de tomar para si praticamente toda a vida musical na corte, o mestre de música de Suas Altezas Reais trazia alívio ao excesso de trabalho e às várias funções que o mestre da Capela Real acumulava sem adequada remuneração. No Natal de 1811 José Maurício ainda regeu na Real Capela a versão orquestrada da "Missa Pastoril" (CPM 108), de 1808, e Marcos Portugal as suas "Matinas do Natal". A partir de 1812, as dedicatórias de algumas das composições demonstram uma clara divisão de funções: Marcos Portugal tornou-se responsável pela música nas cerimônias de primeira ordem na Capela Real. José Maurício continuou compondo para cerimônias na Real Quinta da Boa Vista e na Real Fazenda de Santa Cruz, conforme atestam as dedicatórias do moteto "Tamquam Aurum" (CPM 56), de 1812, para a Real Quinta; os dois "Benditos" (CPM 12, 13), de 1814 e 1815, e um pouco mais tarde, a "Missa da Degola de São João Batista" (CPM XCIX) de 1820, da qual só restam fragmentos, todas para a Real Fazenda. E, como veremos, eventuais composições para a Real Capela não estavam descartadas.

A nova situação também trouxe alívio aos problemas pessoais. Em 1810 e 1811 lhe haviam nascido as duas filhas, Josefina e Panfília, que anos mais tarde seriam consideradas "em estado de loucura". Endividado e com seis outras bocas para alimentar, é possível que estivesse na época mais preocupado com a sobrevivência do que com a perda da primazia na Real Capela. O alívio das atribuições o tornou novamente capaz de aceitar encomendas das Irmandades, e aumentar a renda pessoal.

Após 1811, algumas das composições exibem dedicatórias ás Irmandades de São Pedro, de Santa Cecília e, principalmente, da Ordem dos Terceiros de Nossa Senhora do Monte do Carmo. Em meados de 1812, a hipoteca da casa foi paga, uma evidência de que recuperara a saúde financeira.


Gazeta do Rio de Janeiro, 19 de maio de 1819
Gazeta do Rio de Janeiro, edição de 19 de maio de 1819, na qual se noticia o nascimento da Princesa da Beira, futura rainha Maria II de Portugal, celebrado na Igreja de S. Francisco de Paula com um Te Deum composto por Marcos Portugal e regido por José Maurício. 16


1 FRANCISCO, C. S. MARCOS ANTONIO PORTUGAL - Comendador da Ordem de Cristo Mestre de Capela de S.M. o Imperador do Brasil, etc., etc.. Litografia. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. In MATTOS, Cleofe Person de. José Maurício Nunes Garcia - Biografia. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1997. Caderno de fotografias, p. VIII.

2 "S. A. R. O Principe Regente Nosso Senhor foi Servido ordenar que o mestre do Seminário Marcos Portugal fosse para o Rio de Janeiro servir o mesmo Senhor naquela Corte; e porque deve partir na primeira embarcação da Coroa que sair para a referida Corte, faz-se necessário que Vm.e dê as providências necessárias para ele ser pago dos ordenados que se lhe devem, e de três meses adiantados". MARQUES, António Jorge. D. João VI and Marcos Portugal: the Brazilian Period. Austin: Institute of Latin American Studies, University of Texas, 2005. p. 8. Acesso: 21/04/2015.

3 Uma compilação de títulos das obras compostas para o Teatro do Salitre: "Os bons amigos" (farsa ou entremez, 1786); "A casa de café" (farsa ou entremez, 1787); "A castanheira ou a Brites Papagaia" (entremez, 1788); "O amor conjugal" (drama sério, 1789); "O amor artífice" (farsa ou entremez, baseado no libreto "L'amore artigiano" de Carlo Goldoni, 1790); "A noiva fingida" (drama lúdico, tradução do libreto "Le trame deluse" de Giuseppe Maria Diodati, 1790); "O amante militar" (entremez, da Carlo Goldoni, 1791); "O lunático iludido (O mundo da lua)" (drama, tradução do libreto "Il mondo della luna" de Carlo Goldoni, 1791).

4 São os seguintes os títulos das óperas escritas no período italiano: "La confusione della somiglianza o siano I due gobbi" (dramma giocoso, libreto de Cosimo Mazzini, 1793, Florença); "Il poeta in campagna" (dramma giocoso, libreto de Saverio Zini, 1793, Parma); "Il Cinna" (dramma serio, libreto de Angelo Anelli, 1793, Florença); "Rinaldo d'Asti" (commedia per musica, libreto de Giuseppe Maria Foppa, 1794, Veneza); "Lo spazzacamino principe" (commedia per musica, libreto de Giuseppe Maria Foppa, 1794, Veneza); "Demofoonte" (dramma per musica, libreto de Pietro Metastasio, 1794, Milão); "La vedova raggiratrice o siano I due sciocchi delusi" (dramma giocoso, 1794, Florença); "Lo stratagemma ossiano I due sordi" (intermezzo, libreto de Giuseppe Maria Foppa, 1795, Florença); "L'avventuriere" (farsa, libreto de Caterino Mazzolà, 1795, Florença); "L'inganno poco dura" (commedia, libreto de Saverio Zini, 1796, Nápoles); Zulima (dramma per musica, libreto de Francesco Gonella di Ferrari, 1796, Florença); "La donna di genio volubile" (dramma giocoso, libreto de Giovanni Bertati, 1796, Veneza); "Il ritorno di Serse" (dramma serio, libreto de Francesco Gonella di Ferrari, 1797, Florença); "Le donne cambiate" (farsa, libreto de Giuseppe Maria Foppa, 1797, Veneza); "Fernando nel Messico" (dramma per musica, libreto de Filippo Tarducci, 1798, Veneza); "La maschera fortunata" (farsa, libreto de Giuseppe Maria Foppa, 1798, Veneza); "L'equivoco in equivoco" (farsa, libreto de Giuseppe Maria Foppa, 1798, Verona); "Gli Orazi e Curiazi" (tragedia per musica, libreto de Simeone Antonio Sografi, 1798, Ferrara); "La madre virtuosa" (operetta di sentimento, libreto de Giuseppe Maria Foppa, 1798, Veneza); "Alceste" (tragedia per musica, libreto de Simeone Antonio Sografi, 1798, Veneza); "Non irritar le donne ossia Il chiamantesi filosofo" (farsa, libreto de Giuseppe Maria Foppa, 1798, Veneza); "La pazza giornata ovvero Il matrimonio di Figaro" (dramma comico per musica, libreto de Gaetano Rossi, 1799, Veneza); "Idante ovvero I sacrifici d'Eccate" (dramma per musica, libreto de Giovanni Schmidt, 1800, Milão).

5 Segue a lista das obras escritas para estréia no Teatro de São Carlos: "Adrasto re d'Egitto" (dramma per música, libreto de Giovanni De Gamerra, 1800); "La morte di Semiramide" (dramma serio, libreto de Giuseppe Caravita, 1801); "La Zaira" (tragedia per música, libreto de Mattia Botturini, 1802); "Il trionfo di Clelia" (dramma serio, libreto de Simeone Antonio Sografi, 1802); "La Sofonisba" (dramma serio, libreto de Del Mare, 1803); "La Merope" (dramma serio, libreto de Mattia Botturini, 1804); "L'oro non compra amore" (dramma giocoso, libreto de Giuseppe Caravita, 1804); "Il duca di Foix" (dramma per música, libreto de Giuseppe Caravita, 1805); "Ginevra di Scozia" (dramma eroico per música, libreto de Gaetano Rossi, 1805); "La morte di Mitridate" (tragedia per música, libreto de Simeone Antonio Sografi, 1806); "Artaserse" (dramma serio, libreto de Pietro Metastasio, 1806).

6 São as seguintes as obras escritas para Mafra: um "Laudate Pueri"; dois "Magnificat"; um "Dixit...", um "Si Qæris Miracula", "Victimæ Paschali", uma "Peça a maneira de motete" e uma "Ladainha"; e "Matinas de São Pedro", todas a 6 ógãos obrigados; "De Profundis" e "Beati omnes", a 5 ógãos obrigados e coro; "Matinas de Santo António", a 5 ógãos obrigados; "Matinas de São Francisco", a 4 ógãos obrigados; "Matinas de Quinta-Feira Santa" e um "Veni Sancte Spiritus", sem menção de instrumentos ou vozes. SARRAUTTE, Jean-Paul. Marcos Portugal - Ensaios. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979, 180p. pp. 95-96.

7 Acusação, aliás, sem fundamento. O príncipe regente deixara instruções expressas para que a Assembléia da Regência e o povo cooperassem com os invasores, a fim de evitar derramamento de sangue. GOMES, Laurentino. 1808. Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007, 368p. p. 69.

8 Luís dos Santos Marrocos, bibliotecário assistente, também estava a bordo; sob a sua guarda havia uma quantidade não especificada de caixas contendo parte dos volumes da Real Biblioteca. Marrocos e Marcos Portugal seriam mais tarde desafetos.

9 "1) Aviso do ministro conde de Aguiar ao tesoureiro da Real Capela: meta em folha a Marcos Portugal, mestre de música de Suas Altezas Reais, com a quantia de seiscentos mil réis a cada ano, que ele vencia em Lisboa como mestre do Seminário e compositor da Patriarcal. 2) Aviso do mesmo ao visconde de Vila Nova da Rainha: havendo o Príncipe Regente Nosso Senhor nomeado Marcos Portugal mestre de música de Suas Altezas Reais, é servido que por este serviço vença o ordenado de quarenta mil réis por mês e duzentos e quarenta mil réis anualmente para o pagamento das casas de sua habitação. O que tudo lhe deve ser satisfeito pelo Seu Real Bolsinho, assim como a tença de duzentos mil réis que foi concedida em Lisboa a sua mulher como sobrevivência para ele, de que lhe faz mercê continuar nesta corte. 3) Aviso do mesmo ao Conde de Redondo: o Príncipe Regente Nosso Senhor é servido que V. Ex.ª passe as ordens necessárias para que pela Real Ucharia se dê a ração competente diariamente a Marcos Portugal, mestre de música de Suas Altezas Reais. 4) Aviso do mesmo ao Marquês de Vagos: o Príncipe Regente Nosso Senhor é servido que v. Ex.ª mande pôr, em todos os dias de lição, uma sege das Reais Cavalariças à porta de Marcos Portugal, mestre de música de Suas Altezas Reais, a fim de o conduzir para o paço e daí para a sua casa, depois de acabada a lição". ANDRADE, Ayres de. Francisco Manuel da Silva e Seu Tempo: 1808-1865: Uma Fase do Passado Musical do Rio de Janeiro à Luz de Novos Documentos. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro , 1967, 2v. (Coleção Sala Cecilia Meireles) v. 2, p. 215.

10 "Apenas de chegada, correu Marcos Portugal à Quinta da Boa Vista a beijar as mãos da augusta família e dela teve tal recebimento de agrados e amabilidade [...].
- Há aqui um homem de cor, disse a princesa Dona Carlota para o famoso maestro, que é notável na música.
- Já ouvi contar, respondeu Marcos Portugal.
- Mas quero seu juízo...
- Obedecerei a Vossa Alteza Real... Creio que domingo.
- Não esperarei por domingo. Venha cá amanhã, que mandarei chamar o José Maurício. Traga algum trecho novo para piano. Veja bem que o príncipe costuma chamá-lo de o novo Marcos. [...]
No dia seguinte, com efeito, encontraram-se à tarde em São Cristóvão, os dois artistas, um todo cheio de seus triunfos e glórias, naturalmente arrogante, cercado do imenso prestígio que lhe haviam dado as ovações das platéias de todo o mundo civilizado, possuído do seu papel de autoridade incontrastável e árbitro supremo; outro, José Maurício, mulato, pobre, tímido, personalidade completamente desconhecida fora de limitado círculo, alheio à influição dos grandes centros da Europa, desajudado do exemplo e da audição dos mestres, sem nunca ter saído da Colônia e até da terra natal, entregue às usas próprias inspirações e havendo ganho o pouco que era a poder de muita vocação natural, aturado estudo e penosas elucubrações, dispondo de só apoucados recursos em todos os sentidos a bem da expansão de sua índole artística. [...]
Já estavam os príncipes sentados numa sala em que se ostentava não um modesto cravo, mas soberbo piano de fabricação inglesa, rodeado de pessoas da corte especialmente convidadas para aquela inesperada exibição. [...]
Depois de obtida vênia, desenrolou Marcos Portugal com calculada solenidade uma peça de música que trazia e passou-a a José Maurício, perguntando-lhe se já ouvira falar daquele autor.
Era uma das mais difíceis sonatas de Joseph Haydn.
Com a voz sumida e a gaguejar, respondeu o padre que, desde muito, conhecia grande parte do repertório do exímio mestre, a quem dedicava culto especial. E, com efeito, em suas palestras sobre arte, colocava Haydn acima de Haendel, a par de Mozart e só abaixo de Beethoven, que costumava denominar divino. [...]
- Pois, Sr. José Maurício, ordenou a princesa Dona Carlota, faça-nos ouvir tão grande novidade.
- Nunca toquei esta sonata, objetou o padre, e Vossa Alteza...
- Mas dizem que você tira música de ouvido, como quem lê letra redonda... Sente-se, sente-se ao piano.
Não havia como recuar.
Obedeceu o artista, e, aos primeiros acordes, fez-se completo silêncio.
Começou a sonata.
A princípio, José Maurício se não claudicou, pelo menos mostrou tibieza na execução.
A pouco e pouco, porém, foi-lhe voltando a salvadora calma. Concentrando-se, chamou a si toda a sua energia e, reagindo contra o abalo que lhe escurecia a vista e lhe prendia as mãos, foi levando de vencida todas as dificuldades da primorosa obra, já esquecido do local em que se achava e de corpo e alma entregue às maravilhosas deduções harmônicas do insigne alemão, cujas páginas interpretava com expressão e facilidade cada vez mais acentuadas. [...]
Muitos, voltados para Marcos Portugal, liam na fisionomia do orgulhoso mestre a sucessão de impressões que gradualmente o estavam avassalando, fisionomia no começo fria, desdenhosa, irônica, logo depois atenta, surpresa, e por fim cheia desse entusiasmo expansivo, que a alma verdadeiramente artística não pôde reprimir, nem ocultar, e irrompe com força incoercível na lealdade do seu arrebatamento. José Maurício porém nada via. Estava todo com Haydn. [...]
Continha-se porém o árbitro de que tudo dependia; mas quando José Maurício atacou o presto final e, sem discrepância de uma nota, com a nitidez de magistral interpretação, destrinchou os motivos que, aos quatro e cinco intimamente se travam naquele estilo fugado de pasmosa riqueza e exuberância, Marcos Portugal não teve mais mão em si, pôs-se, talvez malgrado seu, de pé, e ao morrerem os últimos e vigorosos sons da sonata, precipitou-se para aquele que de repente se constituíra seu igual e, no meio dos calorosos aplausos dos príncipes e da corte, apertou-o nos braços com imensa efusão.
- Belíssimo, bradou ele, belíssimo! És meu irmão na arte; com certeza serás para mim um amigo!
"
TAUNAY, Visconde de. José Maurício Nunes Garcia. São Paulo: Ed. Companhia Melhoramentos de São Paulo, 1930. pp. 17-20.

11 O musicólogo Marcelo Campos Hazan sustenta ser o encontro uma construção mítica do Visconde de Taunay. Com ele concordamos, e mencionamos a narrativa de Taunay apenas pelo valor historiográfico. HAZAN, Marcelo Campos. José Maurício, Marcos Portugal e a sonata de Haydn: desconstruindo o mito. In Brasiliana. Revista semestral da Academia Brasileira de Música. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Música, n. 28. pp. 2-11, dezembro de 2008.

12 "CÓPIA FIEL / DO ORIGINAL em mãos do Sr. Dr. J. M. Nunes Garcia / No qual se vê, por notas do próprio punho do padre José Maurício, que até o dia 6 de setembro de 1811 tinha ele escrito as seguintes composições musicais para a Capela Real:
 Dixit Dominus7
 Confitebor5
 Beatus vir5
 Laudate pueri7
 Laudate Dominum7
 Magnificat9
 Lætatus5
 Nisi Dominus ædificaverit5
 Lauda Jerusalem5
 In exitu1
 Diferentes salmos avulsos. 
 Memento Domini1
 Credidi1
 Beati omnes1
 Domine probasti1
 In convertendo Dominus1
 Exaltabo te1
 Confitebor quoniam audisti4
 Salmos alternados: jogos8
 Ladainhas3
 Antífonas1
 Ave Regina cœlorum1
 Alma Redemptoris1
 Regina cœli lætare1
 Si quæris miracula1
 Motetos da trezena de Sto. Antônio1
 Stabat Mater2
 Motetos das dores2
 Semana Santa: 
 Responsórios e lamentaçãoes de 4ª, 5ª e 6ª feira. 
 Toda a Semana Santa da Sé 
 Matinas da Ressurreição 
 Responsórios2
 Ofício de defuntos1
 Illæ dies1
 Missa com grande orquestra1
 Ditas a vozes e órgão14
 Solos avulsos5
 Motetos com grande orquestra3
 Dito - com violoncelos e fagotes1
  - a vozes e órgão20
 Novenas: de S. José1
 Dita - do Coração de Jesus1
  - do Carmo1
 Sequências6
 Te Deum Laudamus3
 Dito - de violoncelos e fagotes2
  - a vozes e órgão1
 Ecce Sacerdos3
 O Salutaris Hostia1
 Tantum Ergo2
 O sacrum Convivium1
 Missa do Asvento e da Quaresma. 
 Motetos das 5 domingas da Quaresma, e dos
quatro do Advento.
 
 Benedictus1
 Dito - de violoncelos e fagotes1
  - a vozes e órgão3
  - das procissóes1
 Matinas1
 Dita - de violoncelos e fagotes1
  - a vozes e órgão8
 Motetos para a procissão do Corpo de Deus. 
 Pange lingua. 
 Hinos a vozes22
 Missas de cantochão figurado4
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1859, T. XXII, p. 504. Reproduzida na introdução à partitura em redução para vozes e órgão da Missa de Requiem. Rio de Janeiro: Casa Bevilaqua, 1896.

13 "Pedindo o decoro e a decência que as peças de música que se puserem em cena nos teatros públicos desta corte nos dias em que o Príncipe Regente Nosso Senhor faz a honra de ir assistir, sejam executadas com a regularidade e a boa ordem que são indispensáveis em tais ocasiões; e, concorrendo, na pessoa de V. M.cê todas as circunstâncias de inteligência e préstimo que se requerem para bem regular e reger semelhantes espetáculos, é o mesmo Senhor servido em comunicar a V. M.cê esta inspeção e direção na forma e na maneira seguinte: 1.º A inspeção e direção de V. M.cê terá somente lugar pelo que respeita às peças de música que se destinarem a ser representadas na presença de Sua Alteza Real. 2.º Não se poderá meter em cena nestas ocasiões peça alguma de música que não seja escolhida e aprovada por V. M.cê, recebendo primeiramente as ordens de Sua Alteza Real para este fim. 3.º Será também da intendência de V. M.cê a distribuição dos caracteres e a escolha dos músicos instrumentistas para servirem nos referidos dias, sendo sempre dos mais hábeis que houverem, e poderá V. M.cê, com inteligência do proprietário do teatro, despedir alguns dos existentes que não estiverem nas circunstâncias que se requerem, tomar outros e, ainda, aumentar o número quando a composição assim o exija. 4.º procurará V. M.cê que os atores e instrumentistas façam aqueles ensaios que necessários forem, e que cumpram inviolavelmente com todas as suas obrigações, a fim de que se façam as récitas com perfeição e ordem. 5.º Igualmente fica à vigilância de V. M.cê, de comum acordo com o empresário ou proprietário do teatro, em fazer apontar na forma do possível tudo o que possa conduzir para a decência dos espetáculos que se houverem de recitar nessas ocasiões. 6.º Será V. M.cê obrigado a assistir a todas as representações no dia em que Sua Alteza Real for ao teatro, para observar e providenciar algum descuido que possa ocorrer. 7.º E, finalmente, acontecendo que algum empregado nos referidos teatros precise ser corrigido ou castigado pelas faltas que cometer nos referidos dias dos ensaios, V. M.cê dará parte ao Visconde de Vila Nova da Rainha para este dar as providências que julgar oportunas segundo as ordens que tiver recebido do mesmo Senhor a esse respeito". ANDRADE, op. cit., 1967. v. 2, p. 215.

14 Marrocos escreveu em carta de 29 de outubro de 1811: "Marcos António Portugal aqui teve uma espécie de estupor de cujo ataque ficou leso de um braço: ele tinha obtido de S.A.R. uma sege efetiva, ração de guarda-roupa, 600 mil réis de ordenado, e do Real bolsinho aquilo que S.A.R. julgasse lhe era próprio e conveniente; além disto, ser Diretor-Geral de todas as funções públicas, assim da igreja como do teatro e em qualquer sentido; e para o parto espera também uma encomenda". SARRAUTTE, op. cit., p. 124.

15 BERNARDELLI, Henrique. D. João VI ouvindo o padre José Maurício ao cravo. Óleo sobre tela (esboço), Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro. In MATTOS, op. cit. Caderno de fotografias, p. IX.

16 "Havendo Sua Majestade [...] destinado o dia 12 do corrente para as devidas ações de graças, pelo feliz [...] nascimento da Sereníssima Senhora Princesa da Beira [...], S.M. Dignou Transportar-se, [...], acompanhado de SS.AA. o Príncipe e a Princesa, e dos Sereníssimos Senhores Infantes D. MIGUEL e D. SEBASTIÃO, ao elegante e suntuoso templo de S. Francisco de Paula [...]. Celebrou em Pontifical o Illustríssimo Monsenhor Roque da Silva Moreira. A música foi de composição do celebre Marcos Portugal, executada por muitos Músicos da Real Câmara e Capela, e dirigida pelo Mestre da mesma, o Padre José Maurício Nunes Garcia". In Grandes Compositores da Música Universal n. 46 - José Maurício. São Paulo: Abril Cultural, 1969. p. 8.


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