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A Lapa Vista do morro de Santa Tereza
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A Lapa vista do morro de Santa Tereza.
Ao fundo, o Morro do Castelo, no centro o Passeio Público e à direita a Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Lapa 1.

A ORDENAÇÃO

Em 5 de janeiro de 1791 José Maurício solicitou ao juiz de genere a abertura de processo para habilitação aos exames sinodais 2. O objetivo do processo de genere era colher informações sobre o postulante e os ascendentes: se batizados; se lhes fora imputada alguma "pena vil" ou acusação de heresia; e se viviam de acordo com os preceitos morais e a religião. As diligências foram realizadas em Minas Gerais, na freguesia de São Gonçalo do Monte e Mariana, sede do bispado, para os avós maternos e a mãe; e no Rio de Janeiro, na freguesia da Sé, onde José Maurício fora batizado; na freguesia de Nossa Senhora da Ajuda, na Ilha do Governador, onde fora batizado Apolinário, o pai; e na Igreja da Apresentação, freguesia de Irajá, na qual fora batizada a avó paterna.

A resposta à inquirição de genere em Minas Gerais partiu do vigário Manuel José de Oliveira, da igreja de Nossa Senhora de Nazaré, Matriz de Cachoeira do Campo, com data de 17 de março de 1791 e anexada ao processo em quatro de abril 3. Confirmava o batismo da mãe e da avó materna. Aos documentos foram anexados os testemunhos de oito moradores do local, que haviam conhecido mãe e filha, os quais nada de desabonador observavam. As inquirições no Rio de Janeiro tiveram respostas nulas, tanto na freguesia de Nossa Senhora da Ajuda como na de Irajá. Mais pesou a qualidade dos testemunhos a favor do postulante, fornecidos por um oficial da alfândega, dois presbíteros, um ourives, um porteiro da fazenda real, e dois músicos - o antigo professor Salvador José de Almeida e Faria e o aluno Bonifácio Gonçalves. Segundo eles, Apolinário e Vitória "sempre foram bons católicos, vivendo com muita decência"; Apolinário "vivia com bom crédito de seu ofício de alfaiate", e quanto a José Maurício, "sempre mostrou muita religiosidade, ainda em idade pueril" 4.

O próximo requisito para ser aceito em ordens, segundo a constituição eclesiástica vigente, era ser livre de "defeito de cor". José Maurício pleiteou a dispensa do "defeito", em petição ao bispo, argumentando qualificá-lo como "irregularidade" 5. A sentença assinada pelo Deão da Sé, com data de 14 de junho de 1791, lhe dava ganho de causa. Ele encontrara, nas entrelinhas dos preceitos da igreja, um modo de acolher o pedido, o que evidencia o juízo positivo já formado pelas autoridades eclesiásticas a respeito do habilitando 6. Os autos do processo lhes foram entregues em 29 de junho de 1791.

Os exames seriam realizados no "Seminário Teológico", em três etapas, a partir de 7 de setembro de 1791, quando se inscreveu para a primeira delas. Em 17 de dezembro, já subdiácono, inscreve-se para a segunda etapa. E em 3 de março de 1792, vencida a última etapa, é "promovido a ordens". Sua primeira missa foi celebrada no Palácio da Conceição, residência do bispo 7.

Interior da Igreja de S. Pedro
O interior da Igreja de S. Pedro, sede da Irmandade de S. Pedro dos Clérigos. 8

Havia um último obstáculo para tomar ordens: possuir algum patrimônio imóvel. Esse obstáculo foi superado com a ajuda do comerciante Tomás Gonçalves, pai do aluno Bonifácio, que lhe doou uma casa na Rua das Bellas Noutes, atualmente Rua das Marrecas, no centro do Rio de Janeiro.

Em 1791, devido aos estudos, compôs somente uma obra: o "Te Deum" pela "feliz chegada" do vice-rei D. Luís de Vasconcelos a Portugal; dessa composição há somente o registro na Gazeta de Lisboa em 10 de maio de 1791, a primeira notícia publicada sobre o compositor além-mar.

A ordenação fez com que ganhasse a confiança das famílias para ensinar música às jovens da sociedade. Já que não tinha recursos para adquirir um piano ou um cravo, exercitava-se onde houvesse, durante as aulas.

Em 7 de setembro 1791, no mesmo dia em que se matriculava para a primeira etapa dos exames, ingressou na Irmandade de São Pedro dos Clérigos 9, na condição de clérigo in minoribus (seminarista). Juntava-se ao mestre de capela, que era membro da irmandade desde 1755, e já ocupara importantes cargos na mesa diretora 10. Logo depois, passou à condição de clérigo in maioribus, quando se lhe ofereceu o subdiaconato. Em 1797, foi eleito "irmão da mesa", função que ocupara ocasionalmente desde 1794.

Em 1795, foi nomeado professor público de música, e instalou um curso de música gratuito na própria casa. Nele o único instrumento disponível para o ensino era uma viola de arame, usada em seqüência por todos os alunos. Grandes músicos e cantores que enriqueceriam a atividade musical do Rio de Janeiro no século XIX, dentre os quais Francisco Manuel da Silva, Cândido Inácio da Silva e Francisco da Luz Pinto, ali tomaram as primeiras lições.

O período pós-ordenação foi de grande produtividade. De 1793 são conhecidos três graduais: "Dies Sanctificatus" (CPM 130); "Oculi Omnium" (CPM 131); e "Tecum Principium" (CPM 132). São de 1794 o "Gradual de Sant'Ana" (CPM 133) e os "Salmos para as Vésperas das Dores de Nossa Senhora" (CPM 177). Em 1795 compôs mais quatro graduais: "Alleluia, Alleluia" (CPM 134); "Alleluia Specie Tua" (CPM 135), "Constitues eos principes" (CPM 136), "Virgo Dei Genitrix" (CPM 137), e a antífona "Sub tuum præsidium" (CPM 2). Em 1797, um "Magnificat" (CPM 16), para vozes e órgão, as "Vésperas de Nossa Senhora" (CPM 178), e a primeira missa, a "Missa para os Pontificais da Sé", perdida.

Em 1798, compôs dois "Miserere" para a Semana Santa: um "para quinta-feira [quarta-feira] santa" (CPM 195), e outro "para sexta-feira [quinta-feira] santa" (CPM 194); a antífona "Ecce sacerdos" (CPM 3), um "Magnificat a 4 vozes e órgão" (CPM 17), a "Ladainha da Novena da Conceição" (CPM 46) e a "Novena da Conceição" (CPM 64). Seria desse ano uma "Missa do advento da quadragésima" (CT 213?).

O inventário de Salvador José de Almeida e Faria, que morreu em 1799, indica que o antigo professor possuía cópias de várias outras obras do aluno, às quais afixava preço: "Credo" (0$200); "Domine adjuvandum" (0$400); "Domine do príncipe de Santa Cruz" (0$200); "Invitatório" (0$800); uma "Missa pequena" (0$400); um "Ofício de defunto" (1$600); "Cinco quartetos (cinco) e um trito" (0$600); salmo "Dixit" (0$600); salmo "Magnificat" (0$100) ; salmo de Jeremias "Dixit" (0$600); "Te Deum" (2$560); "Te Deum" de alternativa, a quatro (0$600); onze tritos "de Nascé"(?) (1$100) 11.


Pagamento a João Lopes Ferreira, 1794

Registro de pagamento ao subchantre João Lopes Ferreira, outubro a dezembro de 1794. 12


1 STEINMANN, João [Johann]. Souvenirs de Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Villa Rica, 1990. pr. 6.

2 "Diz José Maurício Nunes Garcia, natural e batizado na Catedral desta Cidade, filho legítimo de Apolinário Nunes Garcia, Pardo Liberto, natural e batizado na Freguesia de N. Sr.ª da Ajuda da Ilha do Governador; e de sua mulher Vitória Maria da Cruz, parda liberta, batizada na Capela de S. Gonçalo do Monte, filial da freg.ª de N. Sr.ª de Nazaré, do bispado de Mariana, que ele tem sumo desejo de seguir a vida eclesiástica, e p.[ara] esse fim se tem aplicado à Arte da Música, Língua Latina e Retórica, com o intento de servir a Deus no mesmo estado: e porque para conseguir lhe é necessário fazer a sua habilitação de genere - e só espera ser admitido por V. Ex.ª Rev.ma". MATTOS, Cleofe Person de. José Maurício Nunes Garcia - Biografia. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Biblioteca Nacional, 1997. p. 39. A transcrição, por Cleofe Person de Mattos, dos autos do processo de genere pode ser lida em Acervo Cleofe Person de Mattos, documento 05-01-01b. Acesso: 17/02/2015.

3 "Revendo o livro de batizados desta mesma Freguesia, [...] acho uma Joana Mina, escrava de Simão Gonçalves uma Vitória, filha de Joana, escrava de Barbosa Gonçalves [...] a filha batizada na mencionada Capela de São Gonçalo do Monte, filial desta Freguesia [...] é o que posso certificar. Cachoeira, dezessete de março de 1791". MATTOS, op. cit., 1997. p. 19.

4 MATTOS, op. cit., 1997. pp. 39, 40.

5 "Diz José Maurício Nunes Garcia, natural e batizado na Catedral desta Cidade, filho legítimo de Apolinário Nunes Garcia e Vitória Maria da Cruz, pardos libertos, que ele, para ser dispensado da cor e merecer de Vossa Excelência a dispensa quer justificar os itens seguintes: que ele é [...] filho legítimo dos dois pais acima declarados, pardos, filhos de pretos, os quais deram boa educação ao justificante. / Provará que [...] desde a sua infância teve vocação para o estado sacerdotal, e para o melhor poder conseguir se tem aplicado aos estudos de Gramática, Retórica e Filosofia racional e moral, e arte da Música. Provará que o Justificante tem vivido com regularidade nos seus costumes, sem nota alguma, e espera sê-lo até o fim de sua vida [...] ser temente a Deus e obediente às leis. Provará que o Justificante não desmerece essa graça só por não estar incurso em alguma irregularidade que a do defeito de cor [...] digo suspensão e excomunhão, como porque espera da benigna piedade de vossa excelência essa grande esmola com a qual poderá fazer as demais diligências do estilo". MATTOS, op. cit., 1997. p. 41.

6 "Vistos estes autos súplica do Orador Justificante [...] como este tem vivido com muita cristandade e [...] é bem morigerado e com muita vocação desde os tenros anos, para o Estado Eclesiástico e com muita aplicação aos estudos de Latinidade, Retórica e Filosofia, que por todas essas boas qualidades virá a ser muito útil à Igreja. Como porém pela Constituição da Bahia, que foi adotada neste Bispado, não são admitidos descendentes de pretos, por isso necessita o Orador de dispensa para habilitar-se para o dito Estado [...] porque o Suposto no Direito Canônico sejam repelidos os neófitos [...] e como o Orador não é neófito ou filho de algum, ainda que seus pais deles descendam, não pode compreender-se nesta proibição [...] assim como não pode obstar-lhe a Constituição da Bahia, porque ela neste Bispado não é preceptiva, é somente diretiva [...]. Rio, quatorze de julho de 1791, Francisco Gomes Villas Boas". MATTOS, op. cit., 1997. p. 43.

7 Livros de matrículas de ordinandos. L. 5, fl. 1, n. 7. MATTOS, op. cit., 1997. p. 43.

8 MACEDO, Joaquim Manuel de. Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garnier, 1991. p. 136.

9 "Aos sete [dias] do mês de Setembro de mil, setecentos e noventa e um nesta Cidade do Rio de Janeiro, sendo provedor da Venerável Irmandade de S. Pedro o R. Vigário Joaquim Nunes Cabral, foi admitido para irmão José Maurício Nunes Garcia, o qual prometeu guardar as leis da Irmandade, e observar o seu compromisso, e pagou de sua entrada dois mil e oitocentos réis, do que se fez este termo, que assinou. E eu, João de Figueiredo Chaves Coimbra Cônego Prebendo na S.I.C. [Santa Igreja Catedral] Secretário atual da Irmandade o escrevi e assinei. José Maurício Nunes Garcia. O Cônego Prebendo João de Figueiredo Chaves Coimbra". 2º Livro dos Termos dos Irmãos de São Pedro (1755-1798) fl. 120v". DINIZ, Jaime. A Presença de José Maurício na Irmandade de São Pedro. In MURICY, José Cândido de Andrade et alii. Estudos Mauricianos. Rio de Janeiro: INM/FUNARTE/PRÓ-MEMUS, 1983. p. 43.

10 João Lopes Ferreira já fora diretor 1º (1782-3), secretário (1783) e provedor (1784-5) na mesa diretora da Irmandade de São Pedro. Conforme o registro acima, recebia como subchantre da Sé modestíssimos 180$000 anuais, ou 45$000 por quartel, mais gratificações. Ele complementava a renda atendendo às encomendas de música para as festas da Irmandade de São Pedro, conforme os recibos no Livro 3º de Receita e Despesa (1793-1820):
1796- Com a festividade do Santo Patriarca / Ao Pe. Me. João Lopes Ferreira pela Música 48$000
1797- Com a festividade do Santo Patriarca ao Pe. Me. João Lopes Ferreira pela Música 48$000
1798- pelo que pagou de importância da Música ao Pe. Me. João Lopes Ferreira, por seu procurador Joaquim Antônio 48$000
É possível que tivesse nas composições a ajuda do pupilo. José Maurício foi seu sucessor também nessas funções. DINIZ. op. cit. In MURICY et alii. op. cit, 1983. p. 46.

11 CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro Setecentista: a Vida e a Construção da Cidade da Invasão Francesa até a Chegada da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. p. 416.

12 Acervo Musical do Cabido Metropolitano do Rio de Janeiro, documento CRI-SD109. Acesso: 30/10/2014.


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