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O príncipe regente D. João e seu filho D. Pedro
O príncipe regente D. João e seu filho D. Pedro, que viria a ser o primeiro imperador do Brasil 1.

CHEGA A FAMÍLIA REAL PORTUGUESA AO RIO DE JANEIRO

Em 14 de janeiro de 1808 o brigue "Voador" aportou na baía do Rio de Janeiro com a notícia de que em 29 de novembro do ano anterior Portugal fora invadido por tropas franco-espanholas, comandadas pelo general Junot. A família real e parte da nobreza haviam embarcado a tempo em navios portugueses, sob a proteção de uma esquadra inglesa, com destino ao Rio de Janeiro, devendo chegar em breve à cidade, na qual ficaria a Corte até que a paz geral fosse reestabelecida 2.

A fim de hospedar e alimentar a ilustre comitiva, o vice-rei D. Marcos de Noronha e Brito, Conde dos Arcos, ordenou a imediata desocupação do Paço, dali despejando o Tribunal da Relação, a sala de expediente da Casa da Moeda e a si próprio. Em seguida mandou ornar e mobiliar todo o Palacio. Também ordenou que que os proprietários e inquilinos das melhores casas nas quadras próximas as desocupassem. Por fim expediu correspondência para os Governadores de Minas Gerais e de São Paulo, solicitando-lhes todos os víveres que pudessem enviar.

Em 17 de janeiro, um domingo, parte das naus entrava na baía. Uma tempestade em 9 de dezembro fez com que se separassem do restante da esquadra. Não traziam a Rainha Maria I nem o príncipe regente D. João; nelas vinham D. Maria Francisca Benedita, princesa do Brasil, e a infanta D. Mariana, irmãs da rainha, e as infantas D. Maria Francisca e D. Isabel Maria, filhas de D. João. Como o restante da esquadra não aparecesse, a princesa e as infantas resolveram permanecer a bordo. Em 19 de fevereiro, outro barco chegou da Bahia, trazendo a notícia de que o restante frota lá havia aportado; somente após receberem a notícia, a princesa e as infantas desembarcaram e se recolheram ao Paço.

Nos dias que se seguiram outros navios aportaram, e na manhã de 7 de março, a esquadra real foi avistada defronte da barra do Rio de Janeiro. A nau Príncipe Real conduzia a rainha, o príncipe regente, o príncipe da Beira, D. Pedro de Alcântara, e os infantes D. Miguel e D. Pedro Carlos. A nau Afonso de Albuquerque trazia a princesa do Brasil, D. Carlota Joaquina, e em sua companhia a princesa D. Maria Teresa e as infantas D. Maria Isabel, D. Maria da Asunção, e D. Ana de Jesus Maria.

Assim que as naus fundearam, se expediu um aviso de que o príncipe regente não desembarcaria nesta tarde, e sim na do dia seguinte. O príncipe expressou o desejo de assistir, ao desembarcar, a um "Te Deum" na Sé da cidade, em ação de graças pela viagem bem sucedida. O Senado da Câmara expediu então aviso aos moradores da rua do Rosário e de parte da rua Direita, desde o largo do Palácio até à entrada da rua do Rosário, para que ornassem a frente das suas casas e guarnecessem as ruas com areia, folhas e flores. A fim de satisfazer a real determinação, como já se havia ornado para a missa a igreja da Ordem Primeira do Carmo, mais próxima do Paço, os paramentos foram transportados de lá para a Catedral, durante a noite e parte do dia seguinte.

O príncipe regente e os demais integrantes da família real desembarcaram nesse dia 8 de março, às quatro horas da tarde, em meio à aclamação popular, fogos de artifício, salvas de canhões e o toque dos sinos das igrejas. Dirigiram-se a um altar montado no alto da rampa de desembarque, em torno do qual estava o Cabido da Catedral. Aapós beijarem todos a Santa Cruz nas mãos do chantre Filipe Pinto da Cunha e Sousa, teve início a procissão do cais até a Sé. Na rua do Rosário, foi montado um coreto com orquestra e coro, no qual se cantavam hinos em louvor ao príncipe. Ao longo do caminho estavam dispostos os regimentos militares, que saudavam a passagem do cortejo. O adro da Catedral estava tomado pelo povo, que saudava a família real com incessantes vivas, que se misturavam ao repique dos sinos da Sé e de igrejas vizinhas.

Quando entraram na igreja, uma "grande orquestra" com o coro da Sé, "rompeu em melodiosos cânticos". O príncipe e a família real caminharam vagarosamente até o altar do Santíssimo Sacramento, diante do qual se prostraram, ao som do "Te Deum laudamus". Concluída a música, se dirigiram ao altar-mor, diante do qual renderam graças à Virgem Maria e a São Sebastião, o santo padroeiro da cidade, enquanto cantadas as antífonas "Sub tuum præsidium", e "O Beate Sebastiane". O chantre entoou o verso "Dominum, salvum fac Principem", e as demais orações do cerimonial. O testemunho não menciona quem se encarregou da regência, mas há grande probabilidade de que fosse o mestre de capela. Quanto ao repertório, teriam sido apresentadas o "Te Deum em Ré" (CPM 96) composto em 1799, e a antífona "Sub Tuum Præsidium" (CPM 2). Da antífona "O Beate Sebastiane", não há registro.

Em 12 de março foi celebrada uma missa na igreja de Nossa Senhora do Carmo em louvor a Nossa Senhora da Conceição, padroeira do Reino, encerrada com um "Te Deum". Em 15 de março, outra missa solene foi celebrada na Catedral, por ordem do Senado da Câmara, da qual participou a rainha D. Maria I; a solenidade se concluiu com um "Te Deum laudamus" alternado, a dois coros. Outras corporações também realizaram cerimónias solenes em ação de graças. A Irmandade de Santa Cecília celebrou uma missa na Igreja de Nossa Senhora do Parto, prestigiada pelo príncipe regente. Beneditinos, Carmelitas e Franciscanos fizeram celebrar nas suas igrejas missas solenes; o mesmo foi feito pelas Ordens Terceiras e por outras irmandades. Outras festividades estavam já em projeto, quando D. João, tendo em vista a salvaguarda das finanças públicas, declarou concluídas as celebrações.

O príncipe regente, apesar das homenagens se deu conta do estado precário da Sé, e das querelas entre o Cabido e a Irmandade do Rosário. Logo surgiu a idéia de criar uma Capela Real, nos moldes da Patriarcal de Lisboa, a ser instalada na igreja da Ordem Primeira de Nossa Senhora do Monte do Carmo, junto ao Paço, para as reais devoções.

A Semana Santa de 1808 foi celebrada nessa igreja, já considerada oficiosamente a Capela Real. Concorreram para as cerimônias os clérigos vindos de Lisboa, aos quais, por serem poucos, foram acrescentados, por mandado do príncipe, os da Sé do Rio de Janeiro. Apesar da ausência de documemtação, é provável a participação de José Maurício na regência da orquestra e do coro.

O passo seguinte ocorreu em 13 de maio de 1808, dia do aniversário do príncipe regente, com a nomeação do bispo José Caetano da Silva Coutinho Capelão-Mor. O bispo teve que agir com diplomacia para integrar os sacerdotes da Patriarcal de Lisboa com os do Cabido da Sé do Rio de Janeiro. A admissão dos sacerdotes brasileiros era admitida pelo príncipe, mas o clero português pensava o contrário: um documento anônimo sustentava que, como medida de economia, os ministros deviam limitar-se àqueles que anteriormente o serviam. Argumentava o documento que assim evitaria o príncipe "o desgosto de ver entrar nela alguma pessoa com defeito físico visível" 3. Isso obviamente excluiria os músicos da Sé, mulatos na maioria, incluindo o mestre de capela.

A instituição foi oficializada pelo Alvará de 15 de Junho com força de Lei, que elevou à primazia de Capela Real a igreja de Nossa Senhora do Carmo, como paróquia do Paço, nela incluindo os sacerdotes e os músicos da Sé 4. E, reconhecendo os dons musicais de José Maurício, o confirmou, em 26 de novembro, mestre de música da Capela Real. 5. A nomeação o tornou oficialmente, ao menos até 1811, o músico mais importante do reino de Portugal.


A entrada da baía do Rio de Janeiro
A entrada da baía do Rio de Janeiro em 1817 6.

1 DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Rio de Janeiro: Itatiaia, 1992. v. 3, pr. 9.

2 SANTOS, Luiz Gonçalves dos. Memórias para Servir à História do Reino do Brasil Divididas em Três Épocas da Felicidade, Honra e Gloria; Escritas na Corte do Rio de Janeiro no Ano de 1821 e oferecidas a S. Majestade El-Rei Nosso Senhor D. João VI pelo P. Luís Gonçalves dos Santos. Lisboa: Impressão Regia, 1825. 2v., 454p. p.3.

3 MATTOS, Cleofe Person de. José Maurício Nunes Garcia - Biografia. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Biblioteca Nacional, 1997, p. 67.

4 "Eu o Principe Regente, faço saber aos que deste Alvará com força de Lei virem, que sendo-me presente a situação precária e incômoda em que se acham o Cabido e mais Ministros da Catedral desta Minha Cidade e Corte do Rio de Janeiro, em uma Igreja alheia e pouco decente para os ofícios divinos; e desejando estabelecer-lhes um local em que com o devido decoro possam exercer o Ministério das suas funções sagradas, [...] e por outra parte não querendo perder nunca o antiquíssimo costume de manter junto do Meu Real Palácio uma Capela Real [...] ordeno a este respeito o seguinte: I. Que o Cabido da Catedral seja logo com a possível brevidade transferido com todas as pessoas, cantores, e ministros, [...] no estado atual, em que se acha na igreja da Confraria do Rosário, para a igreja que foi dos Religiosos do Carmo, [...], para onde se passarão todos os Vasos Sagrados, Paramentos, Alfaias, e todos os móveis que pertencerem ao mesmo Cabido, e possam de alguma sorte servir no exercício de suas funções. II. Que todos os sobreditos membros do Cabido sejam desde logo, e para o futuro reputados por ministros da minha Capela Real, e como tais gozarão de todos os privilégios, imunidades e isenções, que por costumes antiquíssimos e Bulas Pontifícias têm sido concedidos à Capela Real dos Senhores Reis meus predecessores. III. Que em consequência dos mesmos privilégios, não só os Cônegos de que presentemente consta o Corpo Capitular, mas todos os mais que Eu for servido acrescentar para o futuro, poderão usar de alguma diferença no feitio dos Roquetes e cores das Murças, segundo o acordo, que Eu for servido fazer com o Meu Capelão Mór, em quem concorre igualmente a Jurisdição Ordinária e Delegada desta Diocese. IV. Que, além da corporação e hierarquia dos Cônegos, deve haver uma nova hierarquia de Cônegos graduados, a que se poderá dar o nome e o tratamento de Monsenhores; na qual poderão entrar os Monsenhores que vieram da Patriarcal de Lisboa e outros que Eu for servido acrescentar [...]". SANTOS, op. cit., 1821. p. 86.

5 "... Atendendo a achar-se José Maurício Nunes Garcia Presbítero secular servindo os empregos de mestre de música de minha Real Capela, e organista dela, e dando gratuitamente lições à mocidade que se destina a aprender aquela arte: sou servido que pela folha dos ordenados da mesma Real Capela vença o sobredito José José Maurício Nunes Garcia, por todos os referidos empregos a quantia anual de seiscentos mil réis pagos aos quartéis na forma de costume. O presidente do meu Real Erário o tenha assim entendido, e o faça executar com os despachos necessários. Palácio do Rio de Janeiro, em 26 de novembro de mil oitocentos e oito. Príncipe". MATTOS, op. cit., 1997. p. 69.

6 RUGENDAS, Johann Moritz. Viagem Pitoresca através do Brasil. Rio de Janeiro: Itatiaia, 1998. pr. 6.


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