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O enterro de um padre
O enterro de um padre no início do Século XIX. 1

MESTRE DE CAPELA DA SÉ

Em meados de 1798, João Lopes Ferreira já devia estar seriamente doente; o indica ter recebido o pagamento pela música na Irmandade de São Pedro por meio de um procurador. Em 4 ou 5 de julho de 1798, ele faleceu. A imprecisão na data deriva da diferença entre os registros de óbito da Sé e o da Irmandade de São Pedro. O fato de não haver preservada nenhuma composição sua, contra mais de três dezenas de composições do pupilo nessa época, reforça a hipótese de nada ter composto.

Em dois de julho, talvez por causa da morte iminente, José Maurício fora nomeado mestre de capela, cargo que ocuparia até o fim da vida. O sonho de suceder o mestre havia se tornado realidade. O cargo de subchantre, acumulado por Lopes Ferreira, ocupou o diácono Antônio Mariano.

Nos primeiros anos como mestre de capela era generosamente remunerado. Já na primeira década do século XIX, recebia como côngrua, ou remuneração trimestral, a quantia de 125$000 (cento e vinte e cinco mil réis), equivalente a 600$000 (seiscentos mil réis) anuais, substancialmente maior que a recebida pelo antecessor 2. Em reais de 2014, equivaleria a um salário de R$ 3.312,33 mensais 3. Era também equivalente à remuneração básica do Mestre de Solfa da Patriarcal, em Lisboa, Marcos Portugal.

O prestígio do cargo trouxe-lhe também a preferência nas encomendas para a música das festividades da Irmandade de são Pedro dos Clérigos, o que lhe garantia, em média, 90$000 (noventa mil réis) anuais. 4. Também o habilitou a atender, por arrematação, encomendas do Senado da Câmara referentes à música em festividades fora do calendário da Sé: São Sebastião, Corpus Christi, São Francisco de Borja e da Visitação de Nossa Senhora; bem como casamentos, batizados e óbitos na família real e as posses dos vice-reis na colônia. Uma das cerimônias cuja música arrematou foi a missa em ação de graças pelo nascimento do príncipe D. Pedro, do em 29 de novembro de 1798, para a qual compôs um "Te Deum" não identificado, recebendo 33$280 5. O conjunto musical utilizado nessas cerimônias seria arregimentado entre os músicos da Sé, muitos deles amigos de longa data, e os alunos do curso de música. Como havia de pagar antecipadamente os músicos e o reembolso nem sempre ocorria com celeridade, essas arrematações não lhe garantiam uma renda estável. Mais tarde firmaria um contrato com o Senado da Câmara, de acordo com o qual recebia 102$400 (cento e dois mil e quatrocentos réis) fixos anuais para reger as quatro cerimónias, e os músicos seriam pagos à parte.

Em 1799, ingressou na irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, em cuja igreja a Sé estava instalada. Nada, no entanto, compôs para essa irmandade.

Com a ordenação veio a necessidade de aperfeiçoar a habilidade de orador. De 1802 a 1804 passou a frequentar, ou reiniciou, as aulas de retórica com Manuel Inácio da Silva Alvarenga. Resta da sua oratória somente o tema de sete dos sermões: das Dores; de Santa Cecília; sobre a Penitência; dos Santos Inocentes; de Nossa Senhora do Amparo; das Lágrimas; e do Pentecostes 6.

O período foi de grande produtividade. De 1799 são os graduais "Alleluia Angelus Domini" (CPM 140); "Alleluia Ascendit Deos" (CPM 141); "Benedictus es Domine, Qui Intueris" (CPM 142); "Justus Cum Ceciderit" (CPM 143); "Gradual para os Apóstolos" (CPM 143a), com acréscimos autógrafos ao gradual com o mesmo incipit "Constitues eos Principes" (CPM 136), de 1795; e o gradual "Alleluia Confitmini Domino" (CPM 197). Também de 1799 são as "Matinas de Natal" (CPM 170) e sua orquestração (CPM 170a); um "Libera Me" (CPM 181) instrumental; uma "Missa dos Defuntos" (CPM 182) e um "Ofício dos Defuntos" (CPM 183) para o "Aniversário dos Srs. Cônegos Defuntos"; e a antífona "Domine Tu Mihi Lavas Pedes" (CPM 198) para a Semana Santa; um "Pange lingua" (CPM XXI); uma "Missa Pontifical a 4 Vozes" (CT CIII) e um "Te Deum Seguido" (CPM XCI-96?). De 1800 são os graduais "Ad Dominum Dum Tribularer" (CPM 144) e "Jacta Cogitatum in Domino" (CPM 145), e o moteto "Te Christe Solum Novimus" (CPM 52). Em 1801, compôs o "Te Deum para as Matinas da Assunção" (CPM 91) e a "Missa em Si bemol" (CPM 102). De 1802 é a "Missa para as Pontificais do Sr. Bispo da Sé do Rio de Janeiro" (CPM CIV). Em 1803, ele acrescentou ao repertório instrumental as aberturas "Zemira" (CPM 231) e "A Tempestade" (CPM 233); e, em 1807, a antífona "In Honorem Beatissimae Mariae Virginis" (CPM 4). Além das composições para as festas da Irmandade de São Pedro no período de 1799 a 1811, das quais restaram somente a descrição nos livros de pagamentos 4.

Apesar dos votos de celibato, José Maurício teve, na primeira década do século XIX, uma relação conjugal com Severiana Rosa de Castro, nascida em 1789, também uma mestiça livre. Dessa relação nasceram cinco filhos: Apolinário José, em 1807; José Apolinário, em 1808; Josefina em 1810, Panfilia em 1811 e Antônio José, em 1813. Chegando em 1813 a sete os dependentes - mãe, concubina e os cinco filhos -, é possível que, até mesmo antes, as despesas domésticas já houvessem superado as receitas 7. A situação de penúria a que se veria reduzido no final da vida foi, ao menos em parte, auto-infligida.

Além do problema financeiro, havia o aspecto moral da situação. Uma casa na qual conviviam um padre, a mãe, uma mulher e uma prole que não parava de crescer seria objeto de observações e comentários, inicialmente entre os vizinhos, que cedo ou tarde se espalhariam pela cidade e chegariam aos ouvidos das autoridades eclesiásticas. Para esconder o concubinato, José Maurício não poderia abrigar os familiares na casa de sua propriedade na Rua das Marrecas, pois lá ministrava as aulas públicas de música. Passou então a residir em imóveis alugados por períodos relativamente curtos 8.

O segundo filho mais velho, José Apolinário, mudaria o nome para José Maurício Nunes Garcia Jr., após ter a paternidade confirmada em cartório pelo pai em 1830.


Dr. José Mauricio Nunes Garcia Jr. Antônio Nunes Garcia Jr.
Dr. José Mauricio Nunes Garcia Jr. (1808-1884) e Antônio (1813-?), dois dos cinco filhos de José Mauricio e Severiana Rosa de Castro 9.

Nomeação de José Maurício mestre de capela, 1798

Registro de nomeação de José Maurício mestre de capela, julho de 1798 10.


1 DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Rio de Janeiro: Itatiaia, 1992. v. 3, pr. 26.

2 João Lopes Ferreira recebia côngrua de 45$000 (quarenta e cinco mil réis) por trimestre, ou 180$000 (cento e oitenta mil réis) anuais.

3 Fonte: MeasuringWorth.com. Acesso: 11/10/2014. Considerando um valor médio de 4$000 / £ no período 1808-1821, 600$000 equivaliam a £ 150. Atualizada com o índice do custo de vida (RPI) inglês, 1 £ de 1808 equivale a 68,05 £ de 2014, logo £ 150 equivalem a £ 10,207 atuais. Ao câmbio de R$ 3,894 / £ (11/10/2014), 600$000 de 1808 equivaleriam a R$ 39.748,00 de 2014, ou R$ 3.312,33 mensais. Mesmo diante de alguma imprecisão, se pode observar que a remuneração seria suficiente para atender dignamente as necessidades de uma pessoa, mas não para o sustento de uma família numerosa.

4 São os seguintes os registros de pagamentos a José Maurício feitos pela Irmandade de S. Pedro:
1799- Ao P.M. da Capela José Maurício da Música das Vésperas e dia do Santo Patriarca 48$000
1800- Ao Pe.Me. da Capela José Maurício da Música das Vésperas e dia do Santo Patriarca 48$000
   Ao Mesmo das Novenas 35$200
1801- Ao Me. da Capela o Pe. José Maurício pelas Novenas e Te Deum da Reeleição do Provedor 40$960
   Ao dito pela Música de todo o dia do Sto. Patriarca 48$000
1802- Ao Mestre da Capela o Padre José Maurício pelas Novenas e Tedeu (sic) do novo Provedor 40$960
   Ao dito pela Música do dia do Santo 48$000
1803- Ao Me. da Capela de toda a Música 88$960
1804- Ao Mestre de Capela José Maurício 88$960
1804-5- O importe da Música que pagou ao R.do José Maurício Nunes 76$800
1805-6-Ao José Maurício / Da Música da Festa do N. S. Patriarca, e também das Novenas 76$800
   Da Música das 5 Domingas da Quaresma 8$000
   Da Música do dia do Ofício geral da Irmandade 6$400
   Da música da Semana Santa 3$400
1806-7-Músicas / Ao José Maurício Nunes da Música da Festa do Santo Patriarca, 2 Te Deum e Novenas 76$800
   Ao dito das Domingas e Quaresma 8$000
   Do dia do Ofício geral da Irmandade 6$400
   Música de Canto chão da 5ª Feira Santa 8$000
1807-8-Músicas / Ao R.do José Maurício Nunes da Festa do Santo Patriarca, 2 Te Deum e Novenas 76$800
   Ao dito das Domingas e Quaresma 8$000
   Ao dito da Quinta-Feira Santa 8$000
   Do Ofício geral da Irmandade 6$400
1808-9-Músicas / Ao R.do Pe. Me. José Maurício Nunes da Festa do Sto. Patriarca, 2 Te Deum, e Novena 84$480
   Ao dito das Domingas da Quaresma 8$000
1809-10-Músicas / Ao R.do Pe. Me. José Maurício Nunes Garcês da Festa do Sto. Patriarca, dous Te Deum e Novena 92$800
   Ao dito das Domingas 8$000
   Da Festa de Senhora da Hora 16$000
1810-11-Música / Ao R. Je. Maurício Nunes de Novena e Festa do S. Patriarca 92$800
DINIZ, Jaime. A Presença de José Maurício na Irmandade de São Pedro. In MURICY, José Cândido de Andrade et alii. Estudos Mauricianos. Rio de Janeiro: INM/FUNARTE/PRÓ-MEMUS, 1983. pp. 41-53.

5 MATTOS, Cleofe Person de. José Maurício Nunes Garcia - Biografia. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Biblioteca Nacional, 1997. p. 47. É importante observar que a "arrematação" era um procedimento licitatório, no qual ganhava a concorrência o diretor de música que oferecesse o menor preço ao Senado da Câmara. Nada havia nos estatutos do Cabido da Sé de 1733 que obrigasse o mestre de capela a participar de tais procedimentos.

6 Seu filho, o Dr. José Maurício Jr. os inscreveu numa alegoria que ornava a folha de rosto das Mauricinas. GARCIA Jr., José Maurício Nunes. Mauricinas. Coleção de Canções e Valsas. Dedicada à Memória do Pe. Me. José Maurício Nunes Garcia e ornada com o seu retrato. Desenhado pelo Doutor J. M. N. Garcia. Rio de Janeiro: Tip. de Paula Brito, 22.9.1849.

7 "Passados os dias de nojo [após a morte do pai], encarregou-se aquela tia Felizarda Moreira de Castro da guarda das duas órfãs [suas irmãs] mediante a pensão de 20$000 mensais que eu lhe pagaria [...] e logo depois da missa e ofício no sétimo dia, voltei para casa só [...] para lastimar-me ainda de ter sido avisado pela senhoria do prédio [...] que me custaria o dobro do que pagara meu pai, isto é 32$000, [...]". Nos últimos anos, portanto, somente as despesas anuais com o aluguel e a manutenção das filhas ascenderia a 432$000. GARCIA Jr., José Maurício Nunes. Apontamentos Biográficos / José Maurício Nunes Garcia Júnior (com notas de CURT LANGE). In MURICY et alii. op. cit., 1983. pp. 15-22.

8 O Dr. Garcia Jr. confirma ter sido esta a situação: "nasci na casa n. 62 da Rua dos Barbonos [...] em 10 de Dezembro de 1808". GARCIA Jr., op. cit., p. 15. "É impressionante o número de vezes que o padre José Maurício trocou de residência. Desde a informação de seu aluno Bonifácio Gonçalves, que o conheceu na Freguesia da Sé, [...] registram-se: rua da Vala, onde nasceu; rua Detrás do Hospício (1792); rua das Marrecas (1795); novamente a rua Detrás do Hospício; rua dos Inválidos (1816); rua de São Jorge (1817); rua do Lavradio; Segunda Travessa de Sáo Joaquim; rua Detrás do Hospício e rua do Núncio (1830), onde morreu". MATTOS, op. cit., 1997, p. 251, n. 205.

9 MATTOS, Cleofe Person de. Catálogo Temático das obras do padre José Maurício Nunes Garcia. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1970. Caderno de fotografias.

10Aos catorze dias do mês de agosto de mil setecentos e noventa e oito me foi apresentada uma portaria do Exmo.e Rmo. Senhor Bispo Diocesano, em que digo de dois de julho do presente ano, em que provia ao Rdo. José Maurício Nunes Garcês (sic) o lugar de mestre de capela dessa Catedral, por falecimento do Rdo. João Lopes Ferreira. E para constar fiz este termo de registro, que assinei. / O Penitº João Gonçalves da Silva Campos" Acervo Musical do Cabido Metropolitano do Rio de Janeiro. DVD-ROM. Documento CRI-SD120, p. 9r. Acesso: 30/10/2014.


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